20 de novembro de 2011

Conto: Fraquejando perante a Singularidade.



     Era uma tarde chuvosa, como tantas outras. Provavelmente nem chovia realmente, mas pela cor do céu, era uma possibilidade bem real. Mas pensar que estava chovendo era em parte reconfortante. Afinal alguma coisa natural precisava acontecer para lembrar-nos de como era antigamente. Natural... Que palavra interessante. Uma pequena volta no subúrbio de qualquer cidade, encontramos algo perto do natural. Hoje a dificuldade está em acreditar se algo não foi artificialmente tornado irregular. Depois de toda aquela febre de beleza, onde todos eram belos, altos e idênticos, voltamos ao período verdadeiramente renascentista, onde a assimetria voltou a ser a moda. As pessoas não percebem que a moda, que era tão criticada no passado, é feita pelo povo. Engenheiros da moda apenas lançam sementes que o povo mata para germinar. Grande parte da população, como outrora, prefere ficar sem comer do que fora da moda. Dentro de um trem em alta velocidade não se tem certeza se realmente chove. Um passageiro chega ao destino.


     - O seu nome é Rufus, não?
     - É sim. Preciso ir, deixe-me...
     - Posso tirar uma foto?
     - Olha, garota, você já tirou que eu vi. Não se preocupe. Inclusive, minha imagem está por toda a rede. Se quer fazer mais uma piada, não me incomoda... mais.


     Aquele homem, com uma aparência cansada e uma década mais velha do que a garota, desce pela lateral do trem e se põe a andar por um corredor da estação que desemboca em um salão subterrâneo. Ali precisava lembrar qual departamento precisava visitar. Em um mundo onde tudo se tornava piada imediata, onde não havia mais privacidade, Rufus até estranha a menina. Afinal, não existe mais direito de imagem. Não se é mais dono nem do rosto que carrega. Isso não faz sentido em um mundo onde todos se parecem. Provavelmente queria apenas conversar. Afinal ninguém mais faz isso hoje em dia. Ao relembrar o caminho, este jovem senhor, vestido com um longo sobretudo com a clássica fenda nas costas, toma o rumo algumas vezes calculado. O chapéu havia deixado no seu cubículo. Apenas o capote já causara choque suficiente na sociedade. Todos hoje se vestem como se não houvessem roupas no passado. Todos estão praticamente nus, com seus olhos e cabelos coloridos. Um tom bege chama a atenção em um oceano de vermelho e verde limão.


     - Senhor Rufus, temos uma notícia ruim e uma notícia boa para lhe dar - disse o atendente no fim do salão.


     Rufus sabia que era o inevitável. Finalmente era o único humano que mantinha a doença. Os outros três que, inclusive, conhecera no passado, deveriam ter morrido ou pior: fraquejaram.


     - Conte a ruim primeiro - Rufus era um pessimista. Aprendeu a ser depois de se ver só.
     - Como provavelmente deduziu, principalmente depois de nosso último encontro, o governo decidiu não mais produzir seu remédio. Alegam que se o senhor não abraçar a Singularidade, não é digno de permanecer recebendo medicação. A notícia boa é que este governo cobrirá os gastos com o processo...
     - Mas fraquejar a esse ponto não significa automaticamente que não precisarei mais de medicação? - procurou encontrar um erro de lógica para sustentar um argumento que infelizmente não surtiu efeito.
     - Não entendo o senhor. Fraquejar. Considera-nos fracos? Tens algum motivo para não querer tornar-se um dos nossos? Qual o problema de viver neste mundo maravilhoso? Não há doenças, não há tristeza... O senhor deve estar louco, e se está, até é razoável a atitude do governo.
     - Não sou um de vocês? Não somos da mesma raça? Dá-me o remédio e eu desapareço.
     - Esta será sua última dose. Quanto tempo faz desde a ultima?
     - Uns dez anos.
     - Não, exatamente oito anos, sete meses e vinte e dois dias. A anterior havia durado mais. Mesmo que fosse fornecido a medicação, em algumas décadas precisaria dela diariamente. Até que um dia não seria o suficiente.
     - Podemos pular a explicação? Eu sei muito bem que estou piorando. Dá-me logo e eu desapareço. - Rufus sabia muito bem quantos dias havia durado a última dose.


     O atendente fez alguns gestos sobre a mesa, como se pudesse se comunicar com ela, com um olhar de desaprovação entregou uma pequena caixa ao seu interlocutor. Quando este se virou e saiu, lembrou que este diálogo fora idêntico ao anterior que tiveram. Então sabia que poderia esperar o, como chamavam, velho, voltar em menos de nove anos da próxima vez. Inclusive havia montado uma espécie de aposta, onde todos os funcionários da instituição procuravam acertar exatamente em quanto tempo aquele desgraçado voltaria. Desta vez um homem acertou em cheio e, pela quantidade de créditos apostados, poderia comprar uma garrafa de destilado. Sim, era muito dinheiro envolvido nesta brincadeira com a vida do outro.


     Rufus sabia que aquela droga o deixaria inútil durante pelo menos cinco dias, como da última vez. Então precisaria chegar em seu cubículo antes de medicar-se. No retorno, algumas fotos, cabelos e olhos coloridos depois, considerou a possibilidade de encerrar com tudo aquilo. Se os outros três haviam desistido, ele não seria forte o suficiente. Seu único pesar foi não ter consumado seu amor. E, independente da escolha, não teria um filho com sua amada. A morte ou a singularidade torna a pessoa estéril. E sua amada estava em algum lugar, longe de suas vistas. Nem sabia se ainda estava viva. Parte de uma piada viva era de que provavelmente seria o último humano a morrer. A outra é de que acreditava no amor. Esta seria, definitivamente, sua última chance de encontrá-la.


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