7 de dezembro de 2011

Estou contra deus



     Como já devem ter percebido, sou professor de matemática para um público bastante restrito. A idade média destes alunos é aproximadamente dez anos. Como matemática é a primeira disciplina estritamente científica que se tem no currículo, geralmente causa um certo desconforto para jovens mentes. Afinal, desenhar e pintar é importante, escrever sobre como foram as férias também, mas a primeira vez em que alguém precisa provar algo que registra, é nas aulas desta ciência. Parte da vida de um matemático é desafios. A vida do cientista é recheada de desafios. Adquiri mais um nesta tarde.


Firme em Deus, ele me ajuda!
     Grande parte da população que está sendo irradiada pela matemática com minha perspectiva não consegue assimilar os conceitos debatidos. Indícios responsabilizam os próprios alunos dessa falta de retenção dos assuntos, afinal as notas mais baixas pertencem aos que menos argumentam durante as aulas. A diferença apaixonante entre religião e ciência é que a última exige que suas idéias sejam testadas e, se houver falhas nos testes, contestadas. Já religião é como aquelas comidas congeladas, apenas aperte uns botões e sirva-se. Não pergunte o que foi aquilo que desceu pela sua garganta. Apenas coma. Em minhas aulas procuro deixar isso bem claro: qualquer argumento pode e deve ser questionado até ser provado.


     Um aluno em especial, passou o ano tecendo intrigas entre os colegas, comandando corais com músicas de péssimo gosto, atrapalhando os estudos dos outros e desafiando a autoridade dos professores. Apenas o último item desta lista me é agradável. De resto, este apenas consumiu o precioso ar e o nobre tempo de profissionais da educação. Durante a exposição das notas do ano, afinal em dezembro essa prática se torna funesta, constatei que este indivíduo não teve um aproveitamento razoável o suficiente para avançar de ano. Quando revelei o fato, ele pediu para falar comigo em particular.


     Começou perguntando se eu conhecia a deus. Como não sou bobo, respondi que nunca tive o prazer. O resto do diálogo reproduzirei conforme lembro:


     - Pois professor, Deus e Jesus operam milagres de várias formas... - Eu o interrompi aqui para  evitar alguma parábola como da ovelha perdida ou uma lenda sobre um gigante sendo derrotado por um franzino.


Eu fora, me tira dessa.
     - Mas Miguel (nome fictício), não quero parecer chato, mas não me interessa nem um pouco o que seu deus faz ou deixa de fazer. O teu problema é comigo.


     - Professor, eu vou passar. Eu sei. Deus vai fazer esse milagre na minha vida... Eu tenho orado por isso... - Interrompo novamente.


     - Miguel, se tu usar o tempo que tem rezado para estudar, tenho certeza que sua chance de ser aprovado nas recuperações aumenta. Mas se ficar assim, está só se distraindo. Pega o caderno de alguém, olha os exercícios, faz eles de novo... - Nisso ele interrompe.


     - Não preciso, professor. Vai acontecer um milagre e eu vou passar.


     Neste momento, abri a questão para o grande público, da seguinte forma: 


     - Supondo que exista Deus, qual seria a ação mais provável deste ser: ajudar o Miguel a passar de ano ou fazer qualquer outra coisa pelas pessoas?


     Todos concordaram que se deus existe, não ajudaria o Miguel. A voz do povo é a voz de Deus, não?


     - Professor, você não sabe com o quê está mexendo.


     - Miguel, seu deus terá que passar por cima de mim. E isso não é justo.


     - Professor, você não sabe com o quê está mexendo.


     O pior é que sei exatamente com o quê estou mexendo. Já estive nessa situação. E foi a melhor coisa que me aconteceu. Afinal, não é justo transferir a sua responsabilidade para outrem. Muito menos alguém que não pode se defender. Prevejo uma decepção catastrófica na vida deste garoto onde ele terá que escolher entre olhar para o sol até ficar cego ou começar a tomar as rédeas da própria vida nas mãos.


     Se tem algo que gosto de fazer é corrigir provas e trabalhos. Penso, a cada questão, na pessoa que a realizou. Apesar de algumas respostas serem previstas em um gabarito, me interessa muito mais como o indivíduo chegou ao resultado. Conhecendo a pessoa, sei dizer se, mesmo um erro de cálculo, merece ser visto como uma evolução. Me considero uma pessoa justa, em relação a isso. Se o deus de Miguel é real, uma de suas características é ser absolutamente justo. Se fizer o milagre acontecer, não seria uma ação digna de justiça. Isso implica no fato de que eu seria mais justo do que esse deus. Logo, eu estou mais próximo da divindade cristã do que este para quem Miguel direciona suas preces.


     Na prova final esperava encontrar um Miguel consciente de que o tempo que perdeu durante o ano foi nocivo ao desenvolvimento deste. Mas vou encontrar um fanático. Infelizmente a ciência, que este ignora, poderia ajudá-lo a tornar-se uma pessoa mais tolerante ao fracasso, palavra que não existe no vocabulário de um religioso.


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