6 de janeiro de 2012

Conto: Seu rei está morto



     Apesar de ter atravessado uma grande distância com essa comitiva de astrólogos, não me sinto bem. Estivemos naquele lugar onde provavelmente teria nascido o rei do universo. Do nosso universo. Aquele que teria salvado o povo de suas correntes, de seus dramas e opressões. O que os astros confirmam como o senhor dos senhores.


     Meu problema com este caso é que não posso assumir que uma criança seja superior ao meu próprio ser. Estudei desde cedo todas as artes e mistérios desta terra. Esperava que eu mesmo pudesse ser o rei do mundo. Até que os céus me deram esta infeliz surpresa, com a qual preciso lidar. Não sou mais o dono do mundo.


     Em meu trajeto encontrei outros dois homens, de tão fina estirpe quanto eu. Um destes concordava comigo. Apenas aquele que veio das terras onde nunca é frio, discordava. Poderia ter resolvido tudo naquela noite. O problema foi que a ideia me ocorreu depois.


     Ao ver a criança, fui tomado pelo medo. Minha única certeza era de que se realmente era aquele das profecias, um anjo teria salvo de minha ação. Pois não. Aquela criança poderia mesmo dominar todas as criaturas e governar o mundo?


     Meu acordo pessoal com a força política da região, representada pelo rei caído, era de entregar a criança. Teria resolvido todos os meus problemas. Mas não.


     Não havia cavaleiro que impedisse meu ato. Em um momento de descuido, ou confiança absoluta na minha simulação, deixaram-me sozinho com aquele que seria o rei infante. Apesar de entender a natureza das coisas, inclusive desta coisa, decidi não esperar. Um cajado, que era facilmente transformado em uma serpente venenosa, deixei próximo ao berço de palha. Esta técnica era ensinada aos sacerdotes nas terras de Mizraim. Ainda me encanta a história deste povo. Inclusive a lenda dos escravos. E ela acabaria agora.


     Como todo animal faminto e, sentindo-se ameaçado, tornou a devorar a criança. Já vi muitas coisas horríveis em minha vida. Quem faz o que eu faço, quem passa pelo o que eu passo, quem percorreu as minhas trilhas, sabe que isso não é de causar tanto pavor, quanto causou. Enquanto a criança chorava, eu corri e tomei um camelo preparado, pois havia planejado a fuga.


     No deserto, meu amigo, as criaturas me agradeciam o feito. Até um espírito do fogo entrou em contato direto, quando fiz a fogueira para passar a noite. Todo o mundo agradecia o fato de que havia assassinado o salvador.


     Quando cheguei em meu templo, sem a comitiva de astrólogos que me acompanhara, que em sua maioria permaneceu no caminho inaugurando uma nova religião em cada cidade atravessada, perguntaram-me sobre o nascimento da entidade mística, do senhor dos senhores, aquele que poderia ser nosso rei e deus. Apenas uma frase me passou pela cabeça. Uma que não incriminaria minha pessoa. Após organizar cada contra-argumento, apenas esta fatídica frase me sobrou. Quase chorando, de joelhos, disse de forma sofrida, o que realmente queriam saber.


     - Seu rei está morto. 

29 de dezembro de 2011

Simulação e cultura



     Estamos tão acostumados com simulações que muitas vezes não a separamos da realidade. Por exemplo, você compreende o objetivo social das telenovelas? O poder da literatura indica os anseios do povo. Quando se sonhava com um mundo mais justo, os livros consumidos na época contavam estas histórias. Quando queríamos romances ou aquele confronto com o sistema patriarcal que todos tínhamos guardado, era isso o que se lia.


     O que precisamos pontuar é que a grande maioria da população, cliente da televisão, não estaria lendo. Este aparelho foi além do rádio, e alcança qualquer nível, inclusive aqueles que não são marcados por letras. O que nossa literatura diz hoje dos nossos anseios, pode ser facilmente deformada pela quantidade de pessoas alienadas que cultivamos nestes últimos anos. Não me surpreende saber que livros frágeis como da série Crepúsculo ou até alguns de auto-ajuda-com-açúcar, vendam horrores. Minha esperança é que essa geração evolua a capacidade de leitura. Que fiquem mais exigentes. Que não acabem apenas lendo aquela série de romances do estilo "Bianca" ou "Sabrina".


     Toda e qualquer história contada, jogada, cantada ou sussurrada pode ser uma boa alavanca para grandes leituras. Não quero parecer culto e sugerir Dostoiévski de cara, mas é importante em alguma parte da vida tocar em algum clássico. Como se sabe, para evitar cometer os mesmos erros, precisamos conhecer o passado, nossa história. A perspectiva humana dessa história vem de sua literatura, de sua produção, de suas histórias.


     Alguns personagens, com os quais me identifico, levantam essa questão da simulação. Permito-me interpretar a mensagem condensada: o que verdadeiramente sentimos é real. Se o estímulo externo foi real ou produzido/induzido, faz tanta diferença assim? Não incentivo um culto aos nossos sentimentos, precisamos entendê-los tanto quanto a ausência deles, mas tendo como partida o nosso próprio funcionamento, podemos compreender como é o mundo que nos cerca - e como é nosso mundo ideal.


     Essa ideia vale para todos. Inclusive aqueles aparentemente acéfalos que consomem parte de suas vidas recebendo estímulos doutrinados da mágica caixa colorida. Pensando bem, quantas criaturas, senão poucas, ousam subir acima da margem da lagoa original? Ou apenas, trocar de canal?


28 de dezembro de 2011

Você tem sonho de quê?



     Sou uma das últimas pessoas em meus círculos sociais que dão o devido valor aos sonhos. Não aquela ideia de sonhar com determinada pessoa ou animal e apostar no jogo do bicho que, segundo as últimas notícias, só ganharás se tiver apostado pouco em uma região pouco populosa do tabuleiro. Também não faço-me de profeta onde todos os sonhos se tornam realidade de forma literal. Percebo-os como um arranjo do meu subconsciente. Como se pudesse assistir fragmentos de minha pessoa decantando para o fundo de um oceano inconsciente.

     Uma espécie de filme que se constrói baseado em todos os caminhos mentais que percorremos durante o período em que estivemos acordado. Em dias que leio muito, percebo que meus sonhos se tornam muito mais detalhados, minha mente espera por situações que possa desenhar. Nos dias que jogo algo, geralmente sonho sobre situações em um universo paralelo onde determinada habilidade oriunda do jogo se manifesta em alguns humanos. Ou mesmo quando assisto filmes antes de dormir, sonho sobre histórias paralelas, possibilidades inexploradas e fins alternativos.

"Onde foi parar aquele R$1?"
     Imediatamente após acordar, eventualmente preciso fazer o que chamo de "Teste da Realidade" para ter certeza se acordei. Afinal diversas vezes já estava no caminho para a escola, ou até chegado na sala de aula, quando acordei devidamente. Diversas vezes. Aliás, também resolvi muitos dos problemas matemáticos propostos em aula, durante o sono. Lembro de uma vez encontrei três alternativas corretas de resolução de um único problema. A cada fragmento de sono interrompido por algum motivo, eu escrevia rápido em um bloco de papel minhas impressões sobre o sonho. Ao acordar, revisando os papéis, encontrei as tais soluções.

     Trate bem seus sonhos. Procure lembrá-los. Muitas vezes podem aparecer fragmentos de sua personalidade que está tentando, injustamente, afogar neste oceano. E para isso, já basta o resto do mundo.

     O famigerado "Teste de Realidade" se dá da seguinte maneira: colocar as mãos em algo frio como uma parede interna de um banheiro ou mesmo lavar o rosto. Em último caso, tente acender e apagar a luz. Sempre funciona - no mundo real.

26 de dezembro de 2011

Sou o que sou.



     Alguém sempre compara sua profissão com o que tenho feito ultimamente. Ou seja, o quanto ganho permanecendo um período enorme dentro de uma sala de aula, carregando muito serviço para casa, planejando e avaliando cada passo de outros contra quanto ganha um cara que passa oito horas observando uma série de máquinas. Obviamente eu perco. Na perspectiva deles. Transcrevo a definição pessoal do que é ser professor educador:

     "Sou monarca em meu reino e sou o contador de histórias. Sou amigável e cruel, sou cantor e poeta. Sou imperialista e revolucionário, sou o herói e o vilão. Sou o enviado dos céus, sustento a alma, sou o monstro que se alimenta dos sorrisos. Eu sou o que sou, sou o adversário e o interlocutor. Converso com vivos e mortos, faço com que colaborem. Escrevo uma novela a cada dia. Está marcado em meu código genético, é efêmero como o fogo e eterno como um dragão. Dragão esse que mantém-se sobre tudo que tem de valor. Uma armadura de preciosidades, um universo eu deformo com minha palavra. Faço a vida servir ao futuro para que nenhum dos pequenos cometam nossos erros do passado. Sim, eu sou educador."


      Não quero parecer indelicado, mas quem pensa imediatamente em dinheiro quando planeja a atividade que pretende consumir grande parte do seu tempo até o fim do mesmo, é tão profundo quanto aquele recipiente oferecido para acomodar a sobremesa nos restaurantes de buffet livre.


Been there.

Conto: Queria esperança...



     Era noite de natal quando ele lembrou o quanto gostava de permanecer deitado próximo da árvore onde o bom velhinho depositaria seus presentes. Uma pena, pois diversas vezes foi surpreendido com a falta deste. Nem sempre estava disposto a se comportar, mediante a falta daquele que o premiaria. Por muitos anos o esperou. Até que chegou a infeliz conclusão que este não existe.


     Quando vivia com seus pais, isso já faz muito tempo, não lembra exatamente como acontecia. Na manhã do dia seguinte sempre havia pelo menos um presente. Depois da grande separação, não houve mais quem o fizesse feliz, nem por uma noite.


     Não havia mais natal. Sempre diziam para ele que estava com a vida ganha por ter muito dinheiro em um banco. O problema é que quando se é criança, isso não faz muita diferença.


     Queria natal mas só havia ilusão. Queria amor mas só havia dinheiro.


     A esperança era de que o bom velhinho pudesse trazer sua família de volta. Mas só trouxe coca-cola.


24 de dezembro de 2011

Fundamentalismo religioso


     Durante uma aula na pacata escola em que trabalho, um aluno interpelou-me com uma espécie de reclamação sobre outra professora que ousou falar um absurdo. Fiquei bastante chateado com o que ouvi. Era algo como um tratado contra o absurdo de se estudar este assunto patético e fantasioso que era a citologia. O maravilhoso mundo das células, do qual sou embaixador. Foi um amor à primeira vista, diferente da crase, quando posso contorno-a sem remorso, quando descobri este ramo de estudo da biologia.


     Uma propriedade fundamental de conjuntos infinitos que, de forma grosseira, pode ser definida como uma bela relação entre cada fragmento e o todo. Quando descobri que nossas células funcionam como pequenos corpos, com seu sistema digestório e respiratório, cheguei a conclusão que o corpo humano mantém esta propriedade de um conjunto infinito! Claro que ainda de forma grosseira, mas faz-nos pensar.


     Este aluno colocava uma das mãos na testa enquanto ainda fazia movimentos de desaprovação enquanto sentava sobre uma das mesas daquela que fora sua sala de aula durante o último ano. Estávamos fechando aproximadamente 230 horas/aula naquele dia. Acompanhado de um outro colega que estava em um mesmo nível de desaprovação, apenas por ter uma voz fanha e aguda, mantinha-se em silêncio. Até que o menino sentado sobre a mesa soltou entre os dentes a seguinte afirmação:


     - Absurdo! Essa mulher está louca! Que célula o quê, somos feitos de barro, tá na bíblia!


     Eu fiquei impressionado com a ignorância desta construção frasal. Tentei argumentar.


     - Não, professor, tá na bíblia!


     Não entendo o motivo pelo qual consideram matemática uma ciência inflexível e intolerante. Afinal as vidas destes dois é regida por sofismas dogmatizados. Nisso se vê o perigo da religião que remove o senso crítico e torna seus seguidores em corpos sem vida, acéfalos.


     Sim, existem pessoas neste mundo que são mais inteligentes do que nós. O que me entristece é que a grande maioria da população não consegue perceber a diferença entre fatos e fantasias. Estes serão facilmente enganados por qualquer um, se já não estão sendo. Usarão matemática para calcular os dez por cento do dízimo, pelo menos.


13 de dezembro de 2011

Tenho chance?



     Algo que irei celebrar, que carregarei comigo por toda a vida, que usarei como exemplo sempre que puder, é a reação de um aluno quando, depois de uma afirmação, me fez uma pergunta e fui sincero.



- Professor, falei com minha avó sobre meu comportamento e minhas notas e ela vem falar com o senhor ainda hoje.
- Querido, é cinco de dezembro. Não tenho mais assunto com nenhum dos teus parentes.
- Mas, professor, tenho chance de passar?
- Não.



     Matemática é uma ciência que prevê o futuro. O desempenho no primeiro período indica o comportamento nos outros.


     Matemática é a ciência que tange a realidade. Ou que a contorna. Ou atravessa a rua para que não sejam vistas juntas.