11 de dezembro de 2011

Conto: Responsável



     Tudo lhe passava na frente dos olhos. Assim como dizem os livros e filmes que não teve o prazer de apreciar, toda a vida vinha lhe cobrar tributos. Teve a certeza de que havia lugares maravilhosos no, recentemente apresentado, mundo pois apenas em um contraste poderiam ser tão rudes e violentos. Essa maldade toda não pode ser o que há além das montanhas ou do mar. Existia sim uma mão invisível que movia países como peças de um jogo. A forma com que comandava era através da dúvida e do dinheiro.


     Tinha uma filha que havia morrido junto da mãe, as duas abusadas e metralhadas por serem consideradas dele, aquele que ousou se manifestar. Apesar da dor no peito, não conseguia pensar em outra coisa senão nelas. Na dor que sentiram. Ponderou por uns instantes se a felicidade que proporcionavam era recíproca, se os anos de vida delas havia sido suficientemente alegres para que a humilhação e pânico não as deixaram tensas ao atravessar para o outro lado. Intrigante como era exigente, na hora da própria morte pensava se havia sido um bom esposo e pai. Em um momento racional considerou que havia errado em constituir família e ter amado, mas o sorriso das duas espantou qualquer questão. Tê-las feito feliz foi sua felicidade.


     Os colegas estavam furiosos, desde cedo. Dava para ver em seus olhos vermelhos de fogo. Não é todo dia que missionários do mundo moderno começam a cobrar pelos avanços cedidos. Durante a espiral tétrica de queda, pode constatar que todos, inclusive os agressores, hesitaram por aquele instante. Ele via no olhar do melhor amigo o desespero. Cogitou que fosse relacionado com aquela vez que tentaram pescar juntos e não tiveram sucesso, acabaram por ter que comer raízes por mais um tempo. Sentiu-se responsável pela situação, afinal havia pedido a ajuda do amigo. Poderia ser também da vez que a filha pequena do amigo ficou doente e não chegaram no hospital por falta de combustível. Sempre se responsabilizava por tudo e chorou a morte de uma filha duas vezes, esta do amigo querido e semana passada, da filha de sangue. Então percebeu que o desespero era sobre aquele momento. Mas quando toda sua vida passa diante dos olhos, não se sabe mais exatamente qual história vem depois. As experiências mais traumáticas competem para explicar os comportamentos mais extremos.


     Pensou bem e concluiu que até o hospital é proveniente do progresso. Neste momento a dor no peito piora ao lembrar da matriarca da tribo que era ignorada diariamente após a chegada deste progresso. Aquela senhora nunca quis o mal de ninguém, mas parte dos homens de cor estranha que invadiram o seu país diziam que ela era representante direta de algum inimigo. Pobre senhora, ficou só. Como será que está agora? Sentiu-se mal, não só pela perda do equilíbrio e queda, mas por perceber que foi ingênuo quando os homens estranhos venderam a ideia de paraíso, melhor do que seu Éden particular que mantinha em sua comunidade. Se tivesse lido o primeiro capítulo do livro sagrado deles, teria feito a analogia da serpente, teria chamado seu lugar feliz de Éden. Não sabia os nomes, mas sentia-se no paraíso. Até a chegada dos outros. Poderia haver um hospital sem ter que suportar todo o resto?


     As pernas dobram de uma forma estranha, deixaram de procurar a forma mais confortável. Afinal, não há conforto na morte. Olhou novamente para os agentes do progresso, que com suas armas mágicas tentavam remover seu espírito através de um som alto e queimação no peito. O sangue subia pela garganta, cuspiu um pouco, olhou nos olhos de seu algoz e pronunciou suas últimas palavras.


- Eu não sou dessa sua raça.


     Nunca mais teve dúvidas. Nem dinheiro. E por isso não conseguiriam-lhe roubar o espírito.


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