29 de dezembro de 2011

Simulação e cultura



     Estamos tão acostumados com simulações que muitas vezes não a separamos da realidade. Por exemplo, você compreende o objetivo social das telenovelas? O poder da literatura indica os anseios do povo. Quando se sonhava com um mundo mais justo, os livros consumidos na época contavam estas histórias. Quando queríamos romances ou aquele confronto com o sistema patriarcal que todos tínhamos guardado, era isso o que se lia.


     O que precisamos pontuar é que a grande maioria da população, cliente da televisão, não estaria lendo. Este aparelho foi além do rádio, e alcança qualquer nível, inclusive aqueles que não são marcados por letras. O que nossa literatura diz hoje dos nossos anseios, pode ser facilmente deformada pela quantidade de pessoas alienadas que cultivamos nestes últimos anos. Não me surpreende saber que livros frágeis como da série Crepúsculo ou até alguns de auto-ajuda-com-açúcar, vendam horrores. Minha esperança é que essa geração evolua a capacidade de leitura. Que fiquem mais exigentes. Que não acabem apenas lendo aquela série de romances do estilo "Bianca" ou "Sabrina".


     Toda e qualquer história contada, jogada, cantada ou sussurrada pode ser uma boa alavanca para grandes leituras. Não quero parecer culto e sugerir Dostoiévski de cara, mas é importante em alguma parte da vida tocar em algum clássico. Como se sabe, para evitar cometer os mesmos erros, precisamos conhecer o passado, nossa história. A perspectiva humana dessa história vem de sua literatura, de sua produção, de suas histórias.


     Alguns personagens, com os quais me identifico, levantam essa questão da simulação. Permito-me interpretar a mensagem condensada: o que verdadeiramente sentimos é real. Se o estímulo externo foi real ou produzido/induzido, faz tanta diferença assim? Não incentivo um culto aos nossos sentimentos, precisamos entendê-los tanto quanto a ausência deles, mas tendo como partida o nosso próprio funcionamento, podemos compreender como é o mundo que nos cerca - e como é nosso mundo ideal.


     Essa ideia vale para todos. Inclusive aqueles aparentemente acéfalos que consomem parte de suas vidas recebendo estímulos doutrinados da mágica caixa colorida. Pensando bem, quantas criaturas, senão poucas, ousam subir acima da margem da lagoa original? Ou apenas, trocar de canal?


28 de dezembro de 2011

Você tem sonho de quê?



     Sou uma das últimas pessoas em meus círculos sociais que dão o devido valor aos sonhos. Não aquela ideia de sonhar com determinada pessoa ou animal e apostar no jogo do bicho que, segundo as últimas notícias, só ganharás se tiver apostado pouco em uma região pouco populosa do tabuleiro. Também não faço-me de profeta onde todos os sonhos se tornam realidade de forma literal. Percebo-os como um arranjo do meu subconsciente. Como se pudesse assistir fragmentos de minha pessoa decantando para o fundo de um oceano inconsciente.

     Uma espécie de filme que se constrói baseado em todos os caminhos mentais que percorremos durante o período em que estivemos acordado. Em dias que leio muito, percebo que meus sonhos se tornam muito mais detalhados, minha mente espera por situações que possa desenhar. Nos dias que jogo algo, geralmente sonho sobre situações em um universo paralelo onde determinada habilidade oriunda do jogo se manifesta em alguns humanos. Ou mesmo quando assisto filmes antes de dormir, sonho sobre histórias paralelas, possibilidades inexploradas e fins alternativos.

"Onde foi parar aquele R$1?"
     Imediatamente após acordar, eventualmente preciso fazer o que chamo de "Teste da Realidade" para ter certeza se acordei. Afinal diversas vezes já estava no caminho para a escola, ou até chegado na sala de aula, quando acordei devidamente. Diversas vezes. Aliás, também resolvi muitos dos problemas matemáticos propostos em aula, durante o sono. Lembro de uma vez encontrei três alternativas corretas de resolução de um único problema. A cada fragmento de sono interrompido por algum motivo, eu escrevia rápido em um bloco de papel minhas impressões sobre o sonho. Ao acordar, revisando os papéis, encontrei as tais soluções.

     Trate bem seus sonhos. Procure lembrá-los. Muitas vezes podem aparecer fragmentos de sua personalidade que está tentando, injustamente, afogar neste oceano. E para isso, já basta o resto do mundo.

     O famigerado "Teste de Realidade" se dá da seguinte maneira: colocar as mãos em algo frio como uma parede interna de um banheiro ou mesmo lavar o rosto. Em último caso, tente acender e apagar a luz. Sempre funciona - no mundo real.

26 de dezembro de 2011

Sou o que sou.



     Alguém sempre compara sua profissão com o que tenho feito ultimamente. Ou seja, o quanto ganho permanecendo um período enorme dentro de uma sala de aula, carregando muito serviço para casa, planejando e avaliando cada passo de outros contra quanto ganha um cara que passa oito horas observando uma série de máquinas. Obviamente eu perco. Na perspectiva deles. Transcrevo a definição pessoal do que é ser professor educador:

     "Sou monarca em meu reino e sou o contador de histórias. Sou amigável e cruel, sou cantor e poeta. Sou imperialista e revolucionário, sou o herói e o vilão. Sou o enviado dos céus, sustento a alma, sou o monstro que se alimenta dos sorrisos. Eu sou o que sou, sou o adversário e o interlocutor. Converso com vivos e mortos, faço com que colaborem. Escrevo uma novela a cada dia. Está marcado em meu código genético, é efêmero como o fogo e eterno como um dragão. Dragão esse que mantém-se sobre tudo que tem de valor. Uma armadura de preciosidades, um universo eu deformo com minha palavra. Faço a vida servir ao futuro para que nenhum dos pequenos cometam nossos erros do passado. Sim, eu sou educador."


      Não quero parecer indelicado, mas quem pensa imediatamente em dinheiro quando planeja a atividade que pretende consumir grande parte do seu tempo até o fim do mesmo, é tão profundo quanto aquele recipiente oferecido para acomodar a sobremesa nos restaurantes de buffet livre.


Been there.

Conto: Queria esperança...



     Era noite de natal quando ele lembrou o quanto gostava de permanecer deitado próximo da árvore onde o bom velhinho depositaria seus presentes. Uma pena, pois diversas vezes foi surpreendido com a falta deste. Nem sempre estava disposto a se comportar, mediante a falta daquele que o premiaria. Por muitos anos o esperou. Até que chegou a infeliz conclusão que este não existe.


     Quando vivia com seus pais, isso já faz muito tempo, não lembra exatamente como acontecia. Na manhã do dia seguinte sempre havia pelo menos um presente. Depois da grande separação, não houve mais quem o fizesse feliz, nem por uma noite.


     Não havia mais natal. Sempre diziam para ele que estava com a vida ganha por ter muito dinheiro em um banco. O problema é que quando se é criança, isso não faz muita diferença.


     Queria natal mas só havia ilusão. Queria amor mas só havia dinheiro.


     A esperança era de que o bom velhinho pudesse trazer sua família de volta. Mas só trouxe coca-cola.


24 de dezembro de 2011

Fundamentalismo religioso


     Durante uma aula na pacata escola em que trabalho, um aluno interpelou-me com uma espécie de reclamação sobre outra professora que ousou falar um absurdo. Fiquei bastante chateado com o que ouvi. Era algo como um tratado contra o absurdo de se estudar este assunto patético e fantasioso que era a citologia. O maravilhoso mundo das células, do qual sou embaixador. Foi um amor à primeira vista, diferente da crase, quando posso contorno-a sem remorso, quando descobri este ramo de estudo da biologia.


     Uma propriedade fundamental de conjuntos infinitos que, de forma grosseira, pode ser definida como uma bela relação entre cada fragmento e o todo. Quando descobri que nossas células funcionam como pequenos corpos, com seu sistema digestório e respiratório, cheguei a conclusão que o corpo humano mantém esta propriedade de um conjunto infinito! Claro que ainda de forma grosseira, mas faz-nos pensar.


     Este aluno colocava uma das mãos na testa enquanto ainda fazia movimentos de desaprovação enquanto sentava sobre uma das mesas daquela que fora sua sala de aula durante o último ano. Estávamos fechando aproximadamente 230 horas/aula naquele dia. Acompanhado de um outro colega que estava em um mesmo nível de desaprovação, apenas por ter uma voz fanha e aguda, mantinha-se em silêncio. Até que o menino sentado sobre a mesa soltou entre os dentes a seguinte afirmação:


     - Absurdo! Essa mulher está louca! Que célula o quê, somos feitos de barro, tá na bíblia!


     Eu fiquei impressionado com a ignorância desta construção frasal. Tentei argumentar.


     - Não, professor, tá na bíblia!


     Não entendo o motivo pelo qual consideram matemática uma ciência inflexível e intolerante. Afinal as vidas destes dois é regida por sofismas dogmatizados. Nisso se vê o perigo da religião que remove o senso crítico e torna seus seguidores em corpos sem vida, acéfalos.


     Sim, existem pessoas neste mundo que são mais inteligentes do que nós. O que me entristece é que a grande maioria da população não consegue perceber a diferença entre fatos e fantasias. Estes serão facilmente enganados por qualquer um, se já não estão sendo. Usarão matemática para calcular os dez por cento do dízimo, pelo menos.


13 de dezembro de 2011

Tenho chance?



     Algo que irei celebrar, que carregarei comigo por toda a vida, que usarei como exemplo sempre que puder, é a reação de um aluno quando, depois de uma afirmação, me fez uma pergunta e fui sincero.



- Professor, falei com minha avó sobre meu comportamento e minhas notas e ela vem falar com o senhor ainda hoje.
- Querido, é cinco de dezembro. Não tenho mais assunto com nenhum dos teus parentes.
- Mas, professor, tenho chance de passar?
- Não.



     Matemática é uma ciência que prevê o futuro. O desempenho no primeiro período indica o comportamento nos outros.


     Matemática é a ciência que tange a realidade. Ou que a contorna. Ou atravessa a rua para que não sejam vistas juntas.


12 de dezembro de 2011

Poesia: Verbos


     Durante a viagem da professora de português de meus alunos, acabei orientando as atividades desta língua durante meus períodos vagos na escola. Uma atividade era um poema composto apenas por verbos. E eu resolvi tentar. Vejamos:


Joguei, perdi, chorei;
Aprendi, vi, entendi;
Joguei, ganhei.


     Percebemos nesta pequena demonstração de minha capacidade de escrever, uma situação comum na vida das crianças. Inclusive o nome deste verso ainda quero criar. Um verbo que explique como funciona o espírito das crianças. Elas perdem e choram mas não se dão por vencidas.


     A próxima foi gerada em uma segunda aula, em um dia que estava um pouco mais triste. Não comemoro aniversários, apenas algumas datas me lembram pequenas situações. E a data em que se perde alguém querido, não há como não lembrar a cada ano. Aniversários funcionam de uma forma inversa, comemoramos a chegada. Bem, vejamos:


Amei, morreu, chorei;
Amei, partiu, sofri;
Amei, sofri, compreendi:
amou, sorriu, partiu.


     Vemos o poder das palavras quando elas transcendem a função de reservar fonemas em símbolos. Da compreensão profunda do ciclo da vida.


11 de dezembro de 2011

Conto: Responsável



     Tudo lhe passava na frente dos olhos. Assim como dizem os livros e filmes que não teve o prazer de apreciar, toda a vida vinha lhe cobrar tributos. Teve a certeza de que havia lugares maravilhosos no, recentemente apresentado, mundo pois apenas em um contraste poderiam ser tão rudes e violentos. Essa maldade toda não pode ser o que há além das montanhas ou do mar. Existia sim uma mão invisível que movia países como peças de um jogo. A forma com que comandava era através da dúvida e do dinheiro.


     Tinha uma filha que havia morrido junto da mãe, as duas abusadas e metralhadas por serem consideradas dele, aquele que ousou se manifestar. Apesar da dor no peito, não conseguia pensar em outra coisa senão nelas. Na dor que sentiram. Ponderou por uns instantes se a felicidade que proporcionavam era recíproca, se os anos de vida delas havia sido suficientemente alegres para que a humilhação e pânico não as deixaram tensas ao atravessar para o outro lado. Intrigante como era exigente, na hora da própria morte pensava se havia sido um bom esposo e pai. Em um momento racional considerou que havia errado em constituir família e ter amado, mas o sorriso das duas espantou qualquer questão. Tê-las feito feliz foi sua felicidade.


     Os colegas estavam furiosos, desde cedo. Dava para ver em seus olhos vermelhos de fogo. Não é todo dia que missionários do mundo moderno começam a cobrar pelos avanços cedidos. Durante a espiral tétrica de queda, pode constatar que todos, inclusive os agressores, hesitaram por aquele instante. Ele via no olhar do melhor amigo o desespero. Cogitou que fosse relacionado com aquela vez que tentaram pescar juntos e não tiveram sucesso, acabaram por ter que comer raízes por mais um tempo. Sentiu-se responsável pela situação, afinal havia pedido a ajuda do amigo. Poderia ser também da vez que a filha pequena do amigo ficou doente e não chegaram no hospital por falta de combustível. Sempre se responsabilizava por tudo e chorou a morte de uma filha duas vezes, esta do amigo querido e semana passada, da filha de sangue. Então percebeu que o desespero era sobre aquele momento. Mas quando toda sua vida passa diante dos olhos, não se sabe mais exatamente qual história vem depois. As experiências mais traumáticas competem para explicar os comportamentos mais extremos.


     Pensou bem e concluiu que até o hospital é proveniente do progresso. Neste momento a dor no peito piora ao lembrar da matriarca da tribo que era ignorada diariamente após a chegada deste progresso. Aquela senhora nunca quis o mal de ninguém, mas parte dos homens de cor estranha que invadiram o seu país diziam que ela era representante direta de algum inimigo. Pobre senhora, ficou só. Como será que está agora? Sentiu-se mal, não só pela perda do equilíbrio e queda, mas por perceber que foi ingênuo quando os homens estranhos venderam a ideia de paraíso, melhor do que seu Éden particular que mantinha em sua comunidade. Se tivesse lido o primeiro capítulo do livro sagrado deles, teria feito a analogia da serpente, teria chamado seu lugar feliz de Éden. Não sabia os nomes, mas sentia-se no paraíso. Até a chegada dos outros. Poderia haver um hospital sem ter que suportar todo o resto?


     As pernas dobram de uma forma estranha, deixaram de procurar a forma mais confortável. Afinal, não há conforto na morte. Olhou novamente para os agentes do progresso, que com suas armas mágicas tentavam remover seu espírito através de um som alto e queimação no peito. O sangue subia pela garganta, cuspiu um pouco, olhou nos olhos de seu algoz e pronunciou suas últimas palavras.


- Eu não sou dessa sua raça.


     Nunca mais teve dúvidas. Nem dinheiro. E por isso não conseguiriam-lhe roubar o espírito.


10 de dezembro de 2011

Comunicação e call center


     Toda comunicação humana tem camadas de compreensão. Um entendimento profundo sobre determinado assunto depende de um espaço dentro do indivíduo e entrelaçamento de interesses que o sustente. Assim como um detalhe pode deixar de ser percebido por falta do observador, pessoas superficiais tendem a tratar tudo com superficialidade. Apesar desta introdução filosófica, o objetivo deste texto é relatar minha última interação com o call center de minha operadora de telefonia e internet. Ou seja, é preciso muita paciência para contornar esse tipo de situação.


     Estou sem internet em um aparelho móvel que assemelha-se muito com um tablet, mas tem função de smartphone. Meus dedos é que são grandes. Mesmo ainda tendo crédito pré-pago, resolvi garantir e coloquei um pouco mais de dinheiro nesta conta. Interessante é que todas as vezes que isso acontece, apesar de não ser a Mulher Maravilha sem laço ou o Super Man exposto ao cristal que lhe enfraquece, o sinal de internet foge. Resolvi hoje entender o motivo. Claro que poderia ser uma infeliz coincidência, mas ocorreram duas vezes esta situação infeliz.


     Ao ligar para o número sugerido no site da operadora, a primeira atendente foi absolutamente ignorante e inflexível. Senti como se ela estivesse fazendo um favor ao me atender, sendo que eu era o cliente. Como desabafei no twitter, se era para fazer um serviço mal feito, era melhor que não tivesse. Esta primeira atendente disse que, além das configurações de telefones "mais simples", um tablet não está coberto pelo contrato, então eu precisava de um outro plano específico. Senti que falar com o Cleverbot era mais produtivo do que com esta atendente. Em determinado momento eu disse que não acreditava no que ela dizia e pedi que ela me desse as informações de configuração do telefone "mais simples" que eu iria reproduzir no tablet. Ela me passou para uma segunda atendente, do suporte técnico. Sem dar tchau, nem obrigado por sua ligação. Comecei a ficar nervoso.


     A segunda atendente sugeriu que eu contratasse um plano de dados para o tablet. Com toda a educação que tive, disse gentilmente que não precisava de mais dados do que já uso. Parece que a palavra "tablet" é o nome de algum demônio que puxa o pé de profissionais das telecomunicações, pois quando se fala neles, todos se retorcem e até mudam o tom de voz. Como ela não conseguiu me vender o plano de dados, duas vezes mais caro do que gasto hoje, tentou novamente a falácia da promoção não abranger o tablet. Infelizmente, para eles, o contrato não fala isso. Diz que apenas como um modem ou em um computador, estaria fora do plano. Mesmo lendo para ela o contrato, a criatura agiu como uma boa religiosa e não parecia querer resolver meu problema: apenas fazer-me contrair uma úlcera e uma conta de telefone. Quando eu disse que iria desligar a ligação e iniciar tudo outra vez falando em smartphone, como se fosse este meu aparelho, ela resolveu me enviar para o suporte técnico. Eu fiquei surpreso pois achei que já estava neste setor.


     O Carlos me atendeu e salvou o dia. Concordou com meus argumentos, afinal estava baseado no próprio contrato do plano, concordou que as atendentes anteriores realmente estavam mal preparadas para questões mais elaboradas, ou apenas questões elaboradas. Este rapaz ficou na linha comigo uns dez minutos e constatou que havia apenas um problema. Como da outra vez, a resposta só podia ser manutenção. Inclusive este homem explicou o motivo pelo qual muitas vezes a palava manutenção soa como um placebo em telemarketing. Afinal, realmente representa um problema técnico mas que se manifesta totalmente no mundo físico, não havia nada que ele poderia fazer por mim, apenas aguardar. Prometeu ligar no outro dia, já conheceu minha mãe (que é a titular da conta neste aparelho) e foi absolutamente gentil. Acho que iniciei o primeiro Bromance telefônico de minha vida. Uma pena que as moças não foram tão felizes e sinceras quanto este homem. Obrigado, Carlos!


     Percebo nesta situação que a informação que eu precisava estava atrás de duas outras pessoas. Como uma cebola, tive que descascar um pouco para chegar em uma situação mais confortável em relação ao problema que tinha. O que falta? Treinamento? Interesse?


     Em todas as vezes que liguei para contratar algum serviço sempre fui feliz. Quando é para reclamar ou cancelar, sinto que o universo conspira contra minha pessoa. Felizmente não é apenas comigo que isso acontece. Se pensar, a cortina de abobrinhas feita pelos dois primeiros contatos é para evitar incômodo com incluídos digitais. Essa cortina é formada por outros recém herdeiros desses projetos sociais. Assim, semelhantes se confundem e todos ficam aparentemente satisfeitos.



     Ao encerrar a ligação, meu amigo Carlos pediu encarecidamente que eu permanecesse na linha e desse uma nota para o atendimento. Perguntei de imediato se a nota iria para meu novo amigo somente ou era sobre toda a ligação. Como ele me disse que seria apenas para o último atendente, garanti uma nota máxima para ele.


9 de dezembro de 2011

Separando tudo até a última ponta.


     Percebo uma certa revolta em jovens profissionais da educação quando suas disciplinas são desmerecidas em relação ao eixo "língua portuguesa - matemática". E os mais velhos acabam por associar-se a um dos professores destas duas disciplinas quando pretendem argumentar algo. Seja lógica, organização ou coesão de respostas, é razoável esse tipo de ligação. Um transtorno global do desenvolvimento precisa deixar evidências em todas as atividades, afinal é um transtorno global.


     Assisti uma palestra sobre educação física na infância, com o objetivo clássico dessa disciplina: trabalhar comportamento, limites, cooperação, saúde e diversão. Por fim o palestrante deixou transparecer sua insatisfação da inexistência desse tipo de serviço, do profissional da área, em todas as escolas infantis. Inclusive sua companheira de apresentação mostrou-se bastante infeliz por não haver este cuidado, de uma vida saudável desde a pequena idade e o desmerecimento do mesmo na educação básica.


     Como sou um adepto da vida sedentária, não tenho um grande argumento e lição sobre exercícios físicos. Não nos damos bem. Hoje sou obrigado, mas a vida corrida moderna me obriga a permanecer imóvel. Ainda cumpro minha promessa de exercitar-me. Por enquanto não.


     Um dia claro de inverno, estava eu na sala dos professores da escola em que trabalho quando a colega, ponta oposta do eixo, expôs a suspeita que determinado aluno portasse alguma deficiência cognitiva. Para quem não é do corpo docente, não sabe que isso é parte de uma piada pronta, afinal alguns cérebros parece funcionar apenas nas últimas semanas do ano, quando o desespero é maior do que a arrogância.


     Passei um tempo observando o indivíduo e pude constatar que este não produz material suficiente para ser aprovado. E desde o início havia notado isso, apenas nunca havia cogitado a possibilidade de estar expondo uma pessoa com dificuldades reais de aprendizado ao meu método caótico de ensino.


     O global, de transtorno global do desenvolvimento deste menino, passou a ser questionado no momento em que tive a maravilhosa (e nada original) ideia de conversar com outros professores. A titular da disciplina de educação física me deu a revelação. Enquanto ela falava eu agradecia não ser professor de física, constantemente confundidos com aqueles modelos das propagandas de pasta de dente, da educação física. A mulher disse que o menino em questão participava ativamente dos jogos propostos, sabia comportar-se perante os outros, negociava, seguia as regras, exigia o mesmo dos colegas, ou seja, era como uma criança comum, para não dizer normal.


     Muitos acabam se decepcionando com determinadas ciências pela forma com que é apresentada. Ou pelo confronto de humores com o docente responsável. Procuro deixar clara a diferença entre a matemática e minha personalidade. Procuro apresentar a ciência da forma mais agradável possível. Sou aquela pessoa que procura arranjar namorados para uma amiga um tanto distante e intolerante. Tento vender suas características mais agradáveis como seu senso de justiça e humor peculiar.


     Mesmo assim, este meu aluno, não apreciador da matemática confesso, aparenta realmente ter algum distúrbio. Mas não é nada que impeça-o de concluir e entregar os trabalhinhos propostos. Isso ele não faz. O que posso deduzir? Que este tem um problema muito sério comum aos jovens: desinteresse. Infelizmente não há o que posso fazer para chamar mais a atenção destes.


     O que me preocupa muito é essa indisposição do corpo docente de se conhecer e saber o que cada membro pensa. Suas perspectivas e frustrações. Um corpo vivente com partes autônomas. Cada um puxa para um lado diferente. Assim estamos formando uma nação de esquizofrênicos.


8 de dezembro de 2011

Vocação ou escravidão?



     Você já deve ter ouvido algo sobre vocação. Independente da orientação filosófica-religiosa, geralmente se trata de uma espécie de "chamado" que o indivíduo "tem" para realizar determinada tarefa. Se dá muita ênfase quando esta tarefa tem ligação direta com os interesses da instituição que ensina esse tipo de coisa. Como uma igreja, quando anuncia o tema, procura despertar jovens para que herdem os trabalhos da mesma.


     Vocação tem uma origem etimológica semelhante ao atual "chamado". Apesar de nem sempre ter alguma ligação, um poço e uma menina que atravessa o televisor, um chamado é basicamente alguém ordenando outrem para determinada posição ou atitude. Como Moisés chamou os hebreus ao deserto, vocação tem essa característica da atitude. É diferente de algum dom que o indivíduo carregue, este está mais para uma disposição maior a determinada área. Um chamado é uma espécie de convite para, muitas vezes, utilizar-se dos dons que se tem. Uma pessoa comunicativa pode se tornar um bom professor ou político, mas pode ter uma vocação para a assistência jurídica. Nem todo dom é ligado de imediato ao chamado.


     E você lê isso e pensa que algo neste texto está quase religioso. E realmente é de propósito. Afinal, o que gostaria de também tratar é o sujeito que executa o chamado. Quem o obedece já sabemos, somos nós (ou os outros). Como disse, dependendo da orientação religiosa, pode ser uma divindade que faz este chamado. Mas a sequência aleatória de fatos da vida podem também realizar vários chamados. E isso é muitas vezes traduzido como se fosse alguma exigência de uma entidade espiritual para legitimar, de forma intangível, sua missão. Uma bobagem que se repete ainda nos dias de hoje. Acredite. Não precisamos transferir nossas responsabilidades e vontades para outrem.


     Outro dia encontrei um antigo colega de escola, enquanto saía da instituição onde completamos o ensino fundamental. Este me pergunta o que eu fazia, eu prontamente respondi que estava ensinando. Eu era professor daquela nossa velha escola. Ele não lembrou de imediato, coisa que eu fiz questão dizer: prometemos um ao outro que seríamos professores. Na época ainda seria de história.  Por alguns anos procurei fazer outras coisas, mas acabei voltando para esta carreira, pois não tenho grandes ambições financeiras e gosto de resolver problemas em conjunto. Nada mais justo. Era isso ou desenvolver para a web, mas não gosto tanto assim de café. Já meu antigo colega é policial militar. Seria alguma espécie de chamado?


     A questão que gostaria de levantar é: somos escravos do chamado, desta vocação? Sinto uma tristeza enorme quando as pessoas deixam transparecer que tiveram um grande conflito contra sua própria vocação mas acabaram cedendo por ser a coisa certa. Como se isso valorizasse o produto.


     Em minha opinião, é uma questão de escolha. Posso ter um dom para o desenho mas com disciplina posso refinar minhas técnicas. Para quem quer escrever é importante ser um bom leitor. É interessante saber como se reproduz para que se evite fazê-lo. Isso é como tratamos um eventual dom, aqueles pontos que estavam sobrando em nossa ficha pessoal. Já uma vocação pode ser sumariamente negada. Dela não somos escravos. E sim de nossas vontades. E isso é uma característica encantadora nos seres humanos: a obstinação de seguir o que quer.


     A vida nos chama o tempo todo. Aceitamos apenas os chamados que mais nos agradam. Lembre quando ouvir o próximo dizer que "tentou fugir" de sua vocação, que este pode estar mentido e realmente estar fugindo daquilo que deveria estar fazendo.


7 de dezembro de 2011

Estou contra deus



     Como já devem ter percebido, sou professor de matemática para um público bastante restrito. A idade média destes alunos é aproximadamente dez anos. Como matemática é a primeira disciplina estritamente científica que se tem no currículo, geralmente causa um certo desconforto para jovens mentes. Afinal, desenhar e pintar é importante, escrever sobre como foram as férias também, mas a primeira vez em que alguém precisa provar algo que registra, é nas aulas desta ciência. Parte da vida de um matemático é desafios. A vida do cientista é recheada de desafios. Adquiri mais um nesta tarde.


Firme em Deus, ele me ajuda!
     Grande parte da população que está sendo irradiada pela matemática com minha perspectiva não consegue assimilar os conceitos debatidos. Indícios responsabilizam os próprios alunos dessa falta de retenção dos assuntos, afinal as notas mais baixas pertencem aos que menos argumentam durante as aulas. A diferença apaixonante entre religião e ciência é que a última exige que suas idéias sejam testadas e, se houver falhas nos testes, contestadas. Já religião é como aquelas comidas congeladas, apenas aperte uns botões e sirva-se. Não pergunte o que foi aquilo que desceu pela sua garganta. Apenas coma. Em minhas aulas procuro deixar isso bem claro: qualquer argumento pode e deve ser questionado até ser provado.


     Um aluno em especial, passou o ano tecendo intrigas entre os colegas, comandando corais com músicas de péssimo gosto, atrapalhando os estudos dos outros e desafiando a autoridade dos professores. Apenas o último item desta lista me é agradável. De resto, este apenas consumiu o precioso ar e o nobre tempo de profissionais da educação. Durante a exposição das notas do ano, afinal em dezembro essa prática se torna funesta, constatei que este indivíduo não teve um aproveitamento razoável o suficiente para avançar de ano. Quando revelei o fato, ele pediu para falar comigo em particular.


     Começou perguntando se eu conhecia a deus. Como não sou bobo, respondi que nunca tive o prazer. O resto do diálogo reproduzirei conforme lembro:


     - Pois professor, Deus e Jesus operam milagres de várias formas... - Eu o interrompi aqui para  evitar alguma parábola como da ovelha perdida ou uma lenda sobre um gigante sendo derrotado por um franzino.


Eu fora, me tira dessa.
     - Mas Miguel (nome fictício), não quero parecer chato, mas não me interessa nem um pouco o que seu deus faz ou deixa de fazer. O teu problema é comigo.


     - Professor, eu vou passar. Eu sei. Deus vai fazer esse milagre na minha vida... Eu tenho orado por isso... - Interrompo novamente.


     - Miguel, se tu usar o tempo que tem rezado para estudar, tenho certeza que sua chance de ser aprovado nas recuperações aumenta. Mas se ficar assim, está só se distraindo. Pega o caderno de alguém, olha os exercícios, faz eles de novo... - Nisso ele interrompe.


     - Não preciso, professor. Vai acontecer um milagre e eu vou passar.


     Neste momento, abri a questão para o grande público, da seguinte forma: 


     - Supondo que exista Deus, qual seria a ação mais provável deste ser: ajudar o Miguel a passar de ano ou fazer qualquer outra coisa pelas pessoas?


     Todos concordaram que se deus existe, não ajudaria o Miguel. A voz do povo é a voz de Deus, não?


     - Professor, você não sabe com o quê está mexendo.


     - Miguel, seu deus terá que passar por cima de mim. E isso não é justo.


     - Professor, você não sabe com o quê está mexendo.


     O pior é que sei exatamente com o quê estou mexendo. Já estive nessa situação. E foi a melhor coisa que me aconteceu. Afinal, não é justo transferir a sua responsabilidade para outrem. Muito menos alguém que não pode se defender. Prevejo uma decepção catastrófica na vida deste garoto onde ele terá que escolher entre olhar para o sol até ficar cego ou começar a tomar as rédeas da própria vida nas mãos.


     Se tem algo que gosto de fazer é corrigir provas e trabalhos. Penso, a cada questão, na pessoa que a realizou. Apesar de algumas respostas serem previstas em um gabarito, me interessa muito mais como o indivíduo chegou ao resultado. Conhecendo a pessoa, sei dizer se, mesmo um erro de cálculo, merece ser visto como uma evolução. Me considero uma pessoa justa, em relação a isso. Se o deus de Miguel é real, uma de suas características é ser absolutamente justo. Se fizer o milagre acontecer, não seria uma ação digna de justiça. Isso implica no fato de que eu seria mais justo do que esse deus. Logo, eu estou mais próximo da divindade cristã do que este para quem Miguel direciona suas preces.


     Na prova final esperava encontrar um Miguel consciente de que o tempo que perdeu durante o ano foi nocivo ao desenvolvimento deste. Mas vou encontrar um fanático. Infelizmente a ciência, que este ignora, poderia ajudá-lo a tornar-se uma pessoa mais tolerante ao fracasso, palavra que não existe no vocabulário de um religioso.


6 de dezembro de 2011

Teoria do caos ou "pessoas aleatórias"



     Antes de sair da escola, fui surpreendido por uma senhora que perguntava se eu sabia onde era o diretório do partido político que detém a prefeitura da cidade. Apesar de ter ficado desnorteado por uns instantes, tentando compreender a linha de raciocínio entre a minha pessoa e o prefeito, respondi prontamente que não sabia.


     Sou uma daquelas pessoas que fala muito. E pelo nível de surdez, falo um tanto mais alto do que o comum. Lembro de ter sido repreendido uma vez pelo comprimento de minha barba e da altura do meu falar. O argumento era algo como "mulheres não gostam de exageros". Quem me conhece sabe que procuro não deixar as opiniões da moda ditarem como devo me comportar ou com quem parecer. Ou seja, não estava muito preocupado se estava sendo exagerado. Procurava sempre ser o mais autêntico possível. E não posso explicar como me é estranho esse tipo de comentário surgindo de uma fonte aleatória. Principalmente responsabilizando um gênero, usurpando a opinião das mulheres, para dar-me uma aula de como funciona a sociedade.


     A senhora vinda da nuvem de caos contou-me que em sua sofrida vida, apenas um homem a ajudou no passado, quando precisava cuidar dos filhos pequenos enquanto o esposo trabalhava distante da terra natal. Este homem havia lhe favorecido perante alguma secretaria de assistência, coisa que na época, segundo a mesma, não era autônoma como hoje. Este mesmíssimo homem ocupa hoje o cargo de prefeito da cidade. E, para esta senhora, será lembrado como o salvador de sua angústia. Convenhamos, segundo ela, eram seis crianças que dependiam dela e precisavam de um lar. Qualquer mão que ajudasse, seria lembrada com carinho.


     Quando agimos, explicando de forma exagerada, movemos as cordas onde estão atadas nossas vidas, os cenários e objetos em nossa realidade. Quando temos uma boa ideia, agimos de forma benevolente, é como se pela perspectiva dos favorecidos, nossa presença fosse desejada e nossos relacionamentos se estreitassem. Quando há a ofensa gratuita, o desconforto impera entre os seres. Mesmo sabendo lidar com as críticas, quando a palavra é afiada (e envenenada) de forma a causar dano, gera mágoa. E para isso não há solução. A mágoa é o calo da alma. Uma lesão que deforma e machuca. Passa a ser parte indistinguível do corpo.


     Muitos talvez não saibam como é ser lembrado por ter ajudado alguém, por ter sido importante em um momento delicado, de uma palavra de conforto ou ânimo durante um período de desespero. Uma ação nossa, tão superiores em nossos próprios egos, pode mudar a vida e a perspectiva de um semelhante, principalmente quando sensibilizado pelos apuros da vida.


     Esta senhora quase chorou ao lembrar como foi bom descobrir que o mundo poderia ser um pouco mais agradável quando se conhece as pessoas certas.


     A vida não é justa. É composta por pessoas. Pessoas não são justas. Ainda bem.