30 de outubro de 2011

Conto: Desalmado


      Ela pegava a criança pela mão que chorava e chamava pela mãe. Iriam para a igreja. Todos que acompanhavam a situação percebiam a força que aquela mulher fazia para arrastar sua criança para a missa. Força que era inversamente proporcional a vontade do pequeno de permanecer na frente de um tal senhor que ouviu em uma história do livro. Ao perguntar o motivo pelo qual precisava ir para a igreja, a que ocupava o papel de mãe respondeu com ignorância. E ignorância é a forma cruel de lidar com perguntas que nem quem as devia responder, sabe como.



     Na igreja, depois do pastor ter alimentado algo chamado alma dos presentes com as tais palavras eternas, o menino perguntou se todas as palavras já não eram eternas por definição. Alguns olharam assustados, afinal palavras eternas eram só as do livro. Apenas no livro eterno. E o garoto gostava mais dos livros de história e dos de colorir que não tinham pretensão alguma de serem eternos.

"Mas eu não durarei para sempre. Não preciso de palavras eternas" disse para si.


     Conforme voltavam para o trailer que moravam, testemunhou outra surra que sua transportadora levava do que foi ensinado a chamar de pai. Este homem grande era ciumento apenas quando bebia. Era infeliz e bebia desde cedo. Não, definitivamente não queria durar para sempre. Se aquele homem tinha alma, talvez sentisse fome pois a dele não era alimentada há anos.

     Não era feliz. E a pior coisa que se pode ter no mundo é uma infância infeliz e sem perspectiva. Um fato irreparável. Pelo resto da vida ouvirá músicas fora de tempo, responderá mal aos sinais de afeto e se preocupará com coisas que não importam verdadeiramente. Se preocupará mais em fugir do hoje, do que sente. Procurará um eterno que o acolha. Mas este menino tinha perspectiva.

     Em outra oportunidade, ao prestar atenção durante a alimentação da alma percebeu que sua barriga não enchia. Nem seu coração, como pensou quando ouviu a resposta sobre sua barriga vazia mesmo depois dos sermões. "Eu não tenho alma" pensou. E seu pensamento deve ter sido lido. Ou deve ter sido alto pois algumas pessoas próximas ouviram. E este pensamento se deu imediatamente depois de um hino. Naquele espaço vazio de som onde apenas o que é natural se ouve.

"Não, meu filho, tu tens alma sim! Todos temos alma."

"Mãe, papai tem alma também?"

"Claro, todas as criaturas têm alma."

     Sabia que era diferente. Nunca foi tão fácil perceber que não pertencia aquele mundo. Definitivamente era um "de fora", como pensou. Era um desalmado. Não precisava alimentá-la nem fingir ter. Era como um amigo imaginário que ninguém precisava saber que não tinha. Entoou como nunca todos os louvores ao amigo imaginário ao qual todos depositavam suas aflições e desejos mal orientados. Mas sabia que era tudo fingimento. E não era difícil. Nem moralmente reprovável, afinal não existe moral antes dos oito. Nem em algumas histórias que tangem a realidade. E então era feliz. Afinal, quem é feliz sabendo que livros de colorir não são eternos?

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